segunda-feira, 9 de abril de 2007

Baptismo no Chafariz


Chamava-se Chafariz da Cotovia de Baixo e passou a ser Chafariz da Mãe d'Água. Junto à porta, vejo o cozinheiro com uma cartola branca na cabeça, daquelas típicas de chefe de cozinha. Não parecia ter ar de chefe, mas sim de aprendiz arrogante que sabe tudo. Ignora o meu olhar curioso e sigo em direcção à porta.

Subo um degrau e deparo-me com um balcão corrido, com garrafas deitadas numa parede do lado direito. Ouço água a correr.
- Quantas pessoas?
Fiquei surpreso. Estava à espera de muitas perguntas menos esta.
- Sou eu. Sou só eu.
Desconfiado, o empregado insiste.
- Mas é para comer ou para beber?
- É para beber. É a primeira vez que aqui venho, por isso é só para experimentar. Fiquei curioso pelo sítio...
- Então, siga-me!
Vou atrás do empregado. Subo alguns degraus e estou dentro da casa, da Casa da Mãe d'Água. Ouço água a correr. Vou à procura dela mas não a encontro. O impulso imediato é descer as escadas, mas recebo logo um alerta.
- Por aí não! Se é para beber, é melhor ficar aqui neste piso.
Respondo com gesto afirmativo e sento-me numa mesa individual ao canto. O empregado traz a carta e explica-me o teor da dita carta.
Depois da breve explicação, escolho um vinho alentejano: Esporão 2004, da casta Alicante Bouschet. Um copo que simbolizava um oitavo de litro.
Quando o empregado vai embora, ouço água a correr, como se viesse do mar, num som contínuo sem qualquer pausa. Estou sozinho no piso térreo da casa com um amigo imaginário ao lado para o brinde.
No andar de cima, estão "camones" a provar o petisco da Punheta de bacalhau fumado e o Presunto em Cornucópia, acompanhado do vinho da quinzena escolhido pela casa.
Ouve-se também uma música ambiente, como um murmúrio de blues muito grave que se propaga pelas pedras da casa.
A minha mesa está iluminada por dois focos directos de cima para baixo, iluminando a área total da mesa, realçando duas sombras: uma circunferência escura, maior que a base do copo e outra circunferência no sentido oposto, transparente e difusa. O vinho é escuro, salientando à superfície o vermelho característico da meia lua.
À medida que me vou habituando ao espaço, apercebo-me que o vinho não está quieto um segundo. Ou melhor, está inquieto. Não sei se é das vibrações dos passos dos empregados a subir e a descer escadas ou se quer travar conhecimento com a água roliça.
Este é um sítio de batalha, entre o correr da água de outros tempos e a inocência do vinho de hoje. Cabe-me a mim acalmar a inquietude do vinho, pois a água que vem de Caneças é água velha, que não gosta de mexericos de vinhos gaiatos do Alentejo.